Pedagogia da morte: uma homenagem a Dorinato Prados, o
Papiso.
Papiso morreu. Morreu um dia depois da festa de São Francisco de Assis, aquele que
ousou chamar a morte de irmã e chegou a rogar a ela, no último dia de sua
existência, que o levasse enfim da vida. Quando alguém que amamos se despede da
vida, rapidamente entendemos a história budista narrada pelo monge lamaista
Sogyal Rinpoché, presente no Livro
tibetano do viver e do morrer. Narra ele a estranha história de uma jovem
mulher chamada Krishna Gotami que se tornara mãe há pouco mais de um ano,
concentrando todo o seu desvelo à vida da criança, ao ponto de esquecer-se da
finitude, que marca a existência de todos os seres. De repente, sem que nada
pudesse ser feito, a vida do seu filho foi tragada por um mal súbito, que
transformou todo o belo quadro de encantamento que transbordava em seu lar no
absurdo devastador da morte.
Desesperada, a mãe agarra-se ao menino e corre pelas ruas procurando
alguém que a auxiliasse na impossível tarefa de reaver-lhe o pequenino morto.
Mas ninguém tinha tamanho potencial para desempenhar esse papel e fazer o
milagre e muitos até julgaram que a mulher enlouquecera. Krishna então se apega ao conselho de um
ancião para que buscasse em instância final de emergência o socorro do
Buda.
Em desatino, ela busca
no Iluminado a derradeira esperança de alcançar o milagre de ver a vida
desterrar a morte. Com doçura e compaixão, Gautama ouve o aflito relato da
jovem mãe e lhe apresenta a solução para o terrível problema. Deveria ela
retornar à cidade e conseguir um grão de mostarda retirado de uma casa
velha. Havia, no entanto, um detalhe que
ela não poderia esquecer. Na casa onde lograsse encontrar o grão de mostarda,
nenhum de seus vários e sucessivos moradores poderia ter morrido. Mais: nenhum
familiar de qualquer um dos moradores poderia ter morrido. Buda buscava tempo
para a mãe refletir que sua busca e o pedido eram impossíveis. A mulher nem
mesmo precisou falar novamente com o Buda, porque em meio à sua missão pôde começar a entender
o princípio budista da impermanência, que pode ser definido da seguinte
maneira: na vida tudo passa; só não passa
a passagem.
Na existência humana, a
palavra sempre é uma rotunda heresia.
Tudo é, simultaneamente, finito e infindo. Dizer que as coisas são infindas
significa dizer que elas nunca deixam de perecer e de passar. Apenas nunca
perece nem termina o fato de que a vida é sempre passagem, fluxo, inconstância,
vale dizer, transição... Em termos
filosóficos: ser é vir–a–ser o que ainda não se é. Ser e não–ser, vida e morte
são, portanto, irmãos siameses. Como escreveu o poeta Rainer Maria Rilke:
A morte é
grande
Nós lhe
pertencemos,
Boca
sorridente
Quando nos
acreditamos no coração da vida,
Ela ousa de
repente
Chorar em
nós.
Ao iluminar-se com a
experiência de que a morte habita o coração da vida, Krishna Gotami aprendeu a
grande lição sobre a vida: viver é estar mergulhado no nada. Encarar a morte
nos faz ver de frente o grande segredo da vida, isto é, o nada. Mas o nada que atravessa a vida não a faz
valer nada. O nada que sustenta a vida
nos faz ver que sua riqueza é não se cristalizar em nada. Por isso, os
orientais entendem que o valor de um copo está no nada de seu espaço vazio. Porque
se o copo está vazio, há infinitas possibilidades de preenchê-lo. Isto também ocorre com a vida. Por não ser
cristalizada pode se configurar de infinitas maneiras. A graça da vida é que
cada forma que ela ganha não é a última, mas se encontra aberta para outras
inumeráveis possibilidades.
Os grandes mestres budistas
sabem disso e vivem as suas vidas em busca de uma profunda experiência e
compreensão do nada. Eles têm até uma palavra para falar do nada que atravessa
a vida: sunyata. Em sentido próprio, sunyata significa vazio. Na compreensão Zen, por exemplo, o vazio é
o que sustenta toda a realidade. Todas as formas, todas as forças e todos os
seres são mantidos e sustentados por este vazio. Justamente porque o vazio é o
esteio de tudo, as coisas não possuem substância. Elas não têm fixidez, não
estão prontas ou acabadas, nem chegarão a um ponto ômega, que seria o final de suas transformações, como se
lograssem enfim seu último estádio, ou seja, sua substancialidade. A vida plena é justamente aquela que vê no
fluxo a exuberância de todas as coisas e não a sua maldição. Dessa maneira, não
se ilude com cristalizações definitivas ou pontos finais que não deixem a
pessoa acolher o caráter transitório da existência. Mas não é isto que quase
sempre acontece. Criamos mecanismos de defesa, para que o fluxo da vida seja
petrificado. Morais rígidas e dogmas os mais diversos são exemplos das receitas
de bolo e fórmulas mágicas que criamos, para que o ímpeto criativo da vida
possa ser domesticado. Por isso, tendemos a viver em amnésia profunda: esquecemo-nos
que a morte conjuga-se com a vida e que, se a vida se reinventa, é porque a
morte (a nossa finitude) é sempre fonte de criatividade. Se não lembramos que o
curso da vida é fluídico, então, as marcas da nossa finitude ainda geram em nós
diversos medos. Batemos três vezes na madeira, quando falamos em doenças, em
perdas e dores, como se a nossa finitude pudesse ser anulada ou temporariamente
suprimida. Somos, portanto, analfabetos no que concerne à nossa finitude. Por
isso a surpresa e o desespero, quando vemos se despedir da vida alguém que
amamos.
Papiso morreu. Não choramos sua morte
preocupados com o céu, inferno, purgatório ou reencarnação. Aliás, é
sintomático que nos rituais fúnebres o que realmente nos faz chorar passe ao
largo das palavras de pastores e padres. Eles falam do que vem depois desta
vida. De algum modo, eles não encaram a morte por ela mesma. Vale lembrar um
verbo muito utilizado por muitos espíritas e que orienta muitos religiosos: desencarnar. A morte, neste caso, é
somente uma ilusão. Importa sempre assinalar – pensam esses lideres religiosos
– que a morte não anula a vida e a existência continua a despeito da finitude
desta vida. Ela é uma simples passagem. Por isso, os sacerdotes cristãos
repetem os mesmos textos: “A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó
morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”. “Eu vivo e vós
vivereis também”. “Na casa de meu Pai há muitas moradas (...)” Mas, por que
choramos, se tudo pode ser melhor do outro lado da vida ou se a morte é uma
ilusão? Certamente, não choramos por causa desta outra vida, mas por causa da
nossa vida que continua sem a presença de quem amamos. Choramos por causa de
nós mesmos. Nós que ficamos somos o alvo das nossas lágrimas. Na corda-bamba da
vida, quem amamos se transforma em bastão nas nossas mãos, que são mãos de
equilibristas. O princípio de impermanência é a corda-bamba em que caminhamos.
Mas os amores que cultivamos nos equilibram e tornam a vida digna de ser
vivida. Se um desses amores se despede da vida, então, a nossa vida é abalada e
nós experimentamos o conteúdo da frase de Riobaldo, em Grande
Sertão : Veredas:
“Viver é perigoso”.
Papiso morreu. Ao dizer ter que dizer a ele a-deus, parece que arrancaram de nós um
pedaço de Deus, pois a presença do Papiso em nosso caminho não é um apêndice,
que poderia ser extirpado sem que nada se alterasse. Pelo contrário, nossa vida
torna-se grávida de sentido porque ele inscreveu sua vida em nossos passos.
Aliás, seu nome não é originalmente Papiso. A certidão de nascimento diz
Dorinato Prados. Mas, nossos afetos reinventaram seu nome, para que ele
soubesse que, para cada um de nós, ele é especial. Muitos o chamaram de
Dorinato e assim o fizeram de diversos modos. Mas, nós inventamos outro nome
para mostrar que ninguém experimentou este homem do nosso modo. Certamente,
outros dirão que também o Papiso foi especial e que seu nome não era invocado
sem uma certa atitude de “devoção”. Mais: muitos o invocaram por meio do mesmo
nome, porém de modos singulares. Sim, é verdade, pois as lágrimas que saíram de
muitos olhos mostravam que o nome Dorinato, de certo modo, era para todos, de
diversas formas e por diversos motivos, um nome sagrado. Mas, nós inventamos
outro nome, deixando claro que em nossas vidas sua presença nos marcou de um
modo irrepetível. Ser único para cada um é ser, no fundo, plural. Talvez seja
esta a característica dos grandes seres humanos. Eles morrem no plural. Para
cada um morreu um Dorinato. Morreu o pai, o marido, o avô, o amigo... Muitos
morreram em um só. Por isso, as lágrimas foram vertidas de modos distintos por
causa da morte plural de um homem só. Como lidar com isso? Como viver esse
adeus de modo nobre e saudável? Se o céu e o inferno não nos bastam, como viver
a morte de quem amamos sem fugir da finitude que nos constitui? Melhor: como o
adeus do Papiso pode se transformar em alavanca e não em obstáculo?
Papiso morreu,
mas não desapareceu. Foi esta experiência que acometeu
os discípulos de Jesus, quando o Mestre transformou seu adeus em eucaristia. Mais
que um sacramento cúltico, a eucaristia é a arte de transformar despedida em
uma teimosa presença eterna. Jesus não preocupou-se em escrever códigos
doutrinários para que os discípulos soubessem o que fazer depois de sua
partida. Fez mais: ensinou a transformar a vida de quem diz adeus em presença
eterna para quem fica. Isto não se faz com regras éticas, mas com uma nova
dietética. Sabemos lidar com o luto, quando transformamos a vida de quem amamos
em alimento. Comemos
seu corpo e bebemos seu sangue, para que sua vida ressuscite em nosso passos e
nossas vidas reinventem seus cursos. Antropofagia? Sim, mas com novo sentido: antropo-teo-fagia. Quando a vida
de quem disse adeus nutre a cada dia nossos caminhos, o outro tornou-se nosso
alimento e nosso percurso foi divinizado. É isto que os cristãos fazem com
Jesus. Comem e bebem do seu corpo e sangue (eucaristia), para que este alimento
traga Deus em suas vidas, pois Deus só é Deus, quando o outro é um banquete que
nos alimenta e não um inimigo que nos ameaça. Foi isto que descobriram os
candomblecistas. Eles perceberam que a morte de um grande ser humano o
transforma em Egungun: ancestral que continuamente alimenta a comunidade,
inspirando seus passos e transmitindo Axé, ou seja, Egungun é o ancestral que
tornou-se eternamente eucaristia. Papiso pode
ser o nosso Egungun. Ele pode ser nosso
alimento. Se isto acontecer, então, a última lição do Papiso terá sido
transformar o absurdo da morte em fonte de reinvenção da vida. Este é o nosso
novo desafio. Enquanto nos preparamos para esta tarefa, desejamos para o Papiso
o mesmo que ele desejava para todos nós:
“Vai com Deus e Nossa Senhora. E o diabo atrás tocando
viola”.
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